Saturday, October 14, 2006

Porquê escrever?

Tinha oito anos. Naquela altura, não havia nada mais importante para mim do que o baseball. A minha equipa era os New York Giants e seguia os feitos daqueles homens de bonés preto e laranja com a devoção de um autêntico fiel. Ainda hoje, recordando aquela equipa que já não existe, que jogava num estádio que já não existe, recupero os nomes de quase todo o alinhamento. Alin Dark, Whitey Lockman, Don Mueller, Johnny Antonelli, Monte Irvin, Hoyt Wilhem. Mas não havia maior, não havia mais perfeito, nem mais merecedor de adoração do que o Willie Mays, o incandescente Say-Hey Kid.
Levaram-me, naquela Primavera, ao meu primeiro jogo da primeira divisão. Uns amigos dos meus pais tinham bilhetes de camarote nos Polo Grounds e, numa noite de Abril, fomos em grupo ver jogar os Giants contra os Milwaukee Braves.
Não sei quem é que ganhou, não me lembro absolutamente nada do jogo, mas lembro-me que, depois de o jogo acabar, os meus pais ficaram a conversar com os amigos deles, até todos os espectadores se terem ido embora. Ficámos até tão tarde que tivemos de atravessar o campo e sair pela porta do meio, que era a única que ainda estava aberta. Essa saída ficava mesmo por baixo dos balneários dos jogadores.
Ao aproximar-me da parede, avistei o Willie Mays. Não havia dúvida que era ele. Era mesmo o Willie Mays, já sem o equipamento, vestido roupa normal, ali nem a três metros de mim. Consegui manter as pernas a andar na sua direcção e depois, reunindo toda a minha coragem, obriguei as palavras a sair: "Senhor Mays, - disse eu - podia dar-me um autografo, por favor?".
Ele devia ter vinte e quatro anos feitos, mas não consegui tratá-lo pelo primeiro nome.
A reacção dele à minha pergunta foi brusca, mas cordial. "Claro miúdo" disse ele. "Tens um lápis?". Ele tinha tanta vida, lembro-me, estava tão cheio de energia da juventude, que não parava quieto e continuava aos saltinhos enquanto falava.
Eu não trazia um lápis, e pedi ao meu pai que me emprestasse um. Mas ele também não tinha. Nem a minha mãe. Nem, como depois se viu, nenhum dos adultos.
O grande Willie Mays ficou ali a olhar-nos em silêncio. Quando se tornou claro que nehum do gro tinha com que escrever, virou-se para mim e encolheu os ombros. "É pena, miúdo" disse ele, "não tens lápis, não posso dar autógrafo." E saiu do estádio, para a noite.
Não queria chorar, mas as lágrimas começaram a correr-me pela cara abaixo e não conseguia pará-las. Pior ainda, no carro chorei no caminho todo até casa. Sim, estava esmagado pela decepção, mas também me revoltava contra mim próprio por não conseguir conter as lágrimas. Já não era um bebé. Tinha oito anos e os miúdos crescidos não deviam de chorar por coisas destas. Não só não tinha um autógrafo do Willie Mays, como não tinha mais nada. A vida pusera-me à prova e eu não estivera à altura.
Depois dessa noite, comecei a levar sempre um lápis, para onde quer que fosse. Tornou-se um hábito nunca sair de casa sem ter um lápis no bolso. Não é que eu tivesse quaisquer planos especiais para aquele lápis, mas não queria ser apanhado desprevenido. Tinham-me apanhado um vez de mãos vazias, e eu não queria deixar isso voltar a acontecer.
Se não aprendi mais nada, os anos ensinaram-me ao menos isto: se há um lápis no bolso, há boas hipóteses de que um dia nos venha a tentação de o usarmos.
Como gosto de dizer aos meus filhos, foi assim que me tornei escritor.
Paul Auster, escritor norte-americano.
Dedicado à minha amiga Bia.
Estou a dizer a verdade se disser que este foi, sem dúvida, um dos textos que li que mais me impressionou. Está escrito de uma forma muito simples, e eu senti o sofrimento de impotência daquele rapaz. É engraçado ver-mos, que afinal, para tudo há sempre uma boa explicação...

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